Apelo às esquerdas: reformem o capitalismo antes que a direita o faça!

Do Carta Maior

 

O capitalismo não vai acabar, embora vá mudar. E vai mudar na direção para onde o empurrarem as democracias contemporâneas. Não podemos fazer de novo o que as esquerdas dos anos 30 fizeram diante da Grande Depressão: esperar que o capitalismo se auto-destrua, por suas “contradições” internas.

J. Carlos de Assis

O capitalismo não vai acabar por força da atual crise financeira, mesmo que esta seja a maior de sua história. Sua arte consiste em adaptar-se a crises. Isso porque o capitalismo não é uma ordem social externa ao mundo das relações produtivas, mas o constituinte básico delas. Ou seja, estamos organizados de forma capitalista mesmo quando somos críticos radicais do capitalismo. É que a teia básica em que se movem as sociedades é fundamentalmente capitalista: propriedade privada dos meios de produção, busca do lucro, liberdade de iniciativa. As pessoas criticam o capitalismo, mas não renunciarão a tais coisas.

Acaso se deve abrir mão do princípio da propriedade privada dos meios de produção, seguindo o principal cânone do marxismo radical, em favor da propriedade estatal deles, como passo intermediário da utópica propriedade coletiva e do fim do Estado? Vimos o que isso significou na Rússia e, antes das reformas capitalistas de Deng Xiaoping, na China. Vimos a frustrante experiência cubana. E vemos com ansiedade a experiência venezuelana. Não creio que, sob qualquer aspecto, a abolição da propriedade privada dos meios de produção tenha trazido aos povos dos países onde foi adotada uma efetiva melhora de bem estar social.

Politicamente, a escolha é ainda mais complexa. Marx observou que a ideologia de uma sociedade é a ideologia da classe dominante. Isso significa mais ou menos o seguinte, no plano político: também os pobres e os trabalhadores que jamais terão meios de produção próprios tendem a incorporar ideologicamente como seu o direito à propriedade privada dos outros. E não se trata de ideologia pura: por mais que se critiquem trustes, monopólios, oligopólios e corporações gigantescas, a competição entre eles por uma renda social finita promove avanços tecnológicos e redução de preços relativos ao longo do tempo.

A ambiguidade do capitalismo – um mecanismo brutal de exploração e concentração de renda, e um instrumento da inovação tecnológica e de melhoria do bem estar material dos povos – é que está por trás de sua força política. Justamente por isso, os partidos comunistas, onde detêm e onde detiveram o poder político, só se mantêm ou se mantiveram na condição de partido único. Na Rússia pós-soviética o Partido Comunista ficou na casa dos 20% dos votos, não muito mais. Até prova em contrário, as sociedades democráticas consideram a propriedade dos meios de produção um aspecto vital da liberdade em geral.

A busca do lucro é outro aspecto da liberdade socialmente valorizado nas democracias. E o princípio do lucro se manifesta tanto no empreendedorismo de qualquer escala, ou seja, dos pequenos e dos grandes, quanto na retribuição de renda segundo o esforço e o mérito. Se ficarmos dentro de limites realistas de qualquer proposição política de ordenamento social, vejo poucas possibilidades de que as sociedades livres, quaisquer delas, rejeitem a busca do lucro como um elemento universalmente aceito de organização social. A igualdade de oportunidades tornou-se um princípio basilar das sociedades democráticas; isso, contudo, não nega a retribuição do mérito segundo o esforço e a inteligência desiguais.

A liberdade de iniciativa talvez seja o aspecto mais visível dos méritos do capitalismo. Quem melhor o viu funcionando por baixo do tremendo impulso de progresso material do capitalismo dos dois primeiros séculos foi o próprio Marx, no Manifesto Comunista. De fato, se o feudalismo era o sistema de amarras da sociedade sob o mandato dos feudos, da igreja e das monarquias absolutistas, a Idade Moderna foi o tempo da explosão das liberdades, e, dentre estas, a liberdade econômica. Com o tempo, essa liberdade virou liberalismo e neoliberalismo, degenerando-se, ao exacerbar o individualismo em detrimento da cooperação. Contudo, depurado dos extremos, a liberdade de iniciativa continua um motor de progresso material.

Portanto, o capitalismo não vai acabar, embora vá mudar. E vai mudar na direção para onde o empurrarem as democracias contemporâneas. Não podemos fazer de novo o que as esquerdas dos anos 30 fizeram diante da Grande Depressão: esperar que o capitalismo se auto-destrua, por suas “contradições” internas, para só então colocar um sistema alternativo ideal em seu lugar. Não. Esse sistema alternativo tem que ser construído explorando, sim, as contradições internas do capitalismo, mas sem resvalar para uma utopia meio desesperada, meio saudosista do socialismo real, que simplesmente não levará a nada porque não terá apoio social amplo.

Minha tese central, já defendida em livros, é que estamos deixando a Idade Moderna, ancorada na liberdade individual ilimitada, e entrando na Idade da Cooperação, que para firmar-se exigirá o capitalismo reformado. Sustento isso porque entramos numa época histórica onde não existe um país hegemônico que possa ordenar o mundo segundo seus próprios interesses, como houve eventualmente no passado (Inglaterra e Estados Unidos). Agora, para sair da crise econômica, da crise ambiental, da crise geopolítica e da crise científica na órbita genética (a pesquisa entrou no caminho perigoso da degeneração da espécie), não há alternativa senão a cooperação.

É, pois, a cooperação que ordenará o novo. Claro que ao passar do paradigma da Idade Moderna para o paradigma da Idade da Cooperação estamos em pleno reino do caos, como ocorre sempre que há mudanças de paradigmas. O novo nem será a destruição completa do capitalismo, nem precisa ser, necessariamente, sua afirmação extremada à direita, mas um intermédio dialético que preserve dele algo que tiver de bom e, no polo oposto, um pouco das utopias socialistas, eternizadas desde Platão a Thomas Morus. É nessa síntese que as esquerdas estão desafiadas a trabalhar. Ou fazem isso, ou a direita adaptará o capitalismo a seus interesses exclusivos, tornando as esquerdas irrelevantes face à História. Se o entendi bem, essa é também a proposta de Tarso Genro num ensaio recente em Carta Maior, onde diz que uma agenda atualizada da esquerda só pode ser mundial.

A esquerda revolucionária dos anos 30 não fez a revolução porque não tinha força para isso, nem a reforma, porque se opunha a ela. A reforma foi obra da esquerda não revolucionária social democrata, junto com o centro progressista (sociais cristãos). Agora, boa parte das forças social democratas e sociais cristãs derivaram para o neoliberalismo, enquanto o centro político se confunde com a direita radical. Nesse contexto, as posições se invertem: a direita quer reformar e fazer regredir ao liberalismo econômico o estado de bem estar social, enquanto a esquerda se torna conservadora dele (onde existe objetivamente). Isso indica que a verdadeira luta pela justiça social significa, sim, reformar o capitalismo, porém avançando nas conquistas sociais que, pelo menos na Europa, o capitalismo já tolerou no passado.

 

(*) Economista e professor da UEPB, presidente do Intersul, autor junto com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed. Civilização Brasileira. Esta coluna sai às terças também no site Rumos do Brasil e no jornal carioca Monitor Mercantil.