A decisão do STF sobre a Lei Maria da Penha e as vitórias a serem comemoradas

Por Blogueiras Feministas

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A Niara de Oliveira nos pediu permissão para publicar uma resposta ao meu texto: Dilemas – decisão do STF sobre a Lei Maria da Penha e a autonomia da vítima. Abrimos esse espaço porque acreditamos que o debate em torno da Lei Maria da Penha é fundamental para a autonomia e segurança das mulheres.

Ministros do STF durante sessão de julgamento de artigos da Lei Maria da Penha. Foto de José Cruz/Agência Brasil

A Renata, que é Delegada de Polícia e se depara no dia a dia do seu trabalho (mesmo que este não seja em uma delegacia especializada) com a aplicabilidade e a funcionalidade da Lei Maria da Penha, questionou um dos pontos decididos pelo Supremo Tribunal Federal: O que se refere à ação penal, no caso da lesão corporal leve, não depender mais da representação direta da vítima.

Antes ela observa que os outros dois pontos da decisão do STF — ADI 4424, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha — são positivos.

O primeiro: o STF declarou a CONSTITUCIONALIDADE da Lei Maria da Penha. Sim, porque um instrumento que visa proteger uma minoria vulnerável foi questionada por violar o princípio da igualdade. Mais do que isso, foi chamada de diabólica, por um juiz em Minas Gerais. Vale lembrar que quando dizemos, minoria, não dizemos em termos numéricos, mas em termos de representatividade e poder de decisão – ainda são as mulheres, assim como os negros e outras minorias, sub-representados nas esferas de poder, sejam elas do poder público ou da iniciativa privada, que detém grande influência sobre os rumos das políticas públicas.

(…)

O segundo ponto a ser celebrado é que outro dispositivo da Lei Maria da Penha foi ratificado pela Suprema Corte: o que afasta a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) de todo e qualquer crime cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista.

Para divergir do terceiro ponto da decisão, (a ação penal não depender mais da representação direta da vítima), Renata diz:

Observo nesta decisão, e nas discussões sobre ela, um dilema, que já era enfrentado há décadas, pelas feministas de então, que lutavam por políticas públicas específicas ao tratamento da violência contra a mulher: a vítimização, como fórmula necessária para a sensibilização dos órgãos com poder decisório VS. a autonomia da vontade da mulher. (grifos originais)

Violência contra a mulher. Ilustração de Gabriel Muniz, designer gráfico de Pernambuco.

Antes de fazer as minhas observações a respeito desse debate preciso me apresentar, já que é a primeira vez que escrevo neste espaço e para todas(os) entenderem de que lugar no mundo estou falando. Sou jornalista, gaúcha, de esquerda, tenho 40 anos e sou feminista militante há mais de vinte, nesse momento afastada da luta do dia a dia (também por estar longe de casa). Em todo esse tempo de feminismo nunca havia me deparado com essa discussão observada pela Renata. Talvez por fugir muito da discussão puramente teórica, porque entendo que a luta contra a violência se dá muito mais na prática. Explico.

Quem milita nessa área de proteção e apoio às mulheres vítimas de violência — e esse sempre foi meu campo de atuação — sempre entendeu a dependência do inquérito e do processo contra o agressor apenas na vontade da vítima como um dos maiores entraves para coibir a perpetuação do chamado ciclo da violência doméstica. Passei por todas as etapas dessa luta. O Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas (GAMP — ONG Feminista) do qual sou uma das fundadoras em Pelotas — e que está nesse 8 de Março de 2012 completando 20 anos de vida — foi o responsável por todas as políticas públicas de combate à violência de gênero em Pelotas. Desde a transformação do Posto Policial para a Mulher que tínhamos em Delegacia Especializada; a criação do Conselho Municipal da Mulher (o único no Brasil oriundo do movimento organizado de mulheres e que elege sua presidenta sem interferência do poder executivo) que sempre serviu como amplificador das denúncias de violência sofrida; a criação da Casa de Acolhida Luciete Saraiva (albergue para mulheres vítimas de violência e em situação de risco — leia-se: ameaçadas de morte); a formação de Promotoras Legais Populares em parceria com a Themis — Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero (ONG gaúcha que dispensa apresentações); a criação e manutenção dos SIMs (Serviço de Informação à Mulher — local de atuação das PLPs); a parceria com o Jus Mulher (serviço de atendimento jurídico prestado pela ABMCJ — Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica — da Seccional Pelotas da OAB) para orientar as vítimas que nos procuravam gratuitamente.

O GAMP, desde o seu início em 1992, sempre foi — junto com o Posto Policial e depois a Delegacia — depositário de um número imenso de denúncias de casos de violência. Ou seja, além de acompanhar o trabalho da polícia, recebíamos, sozinhas, um número imenso de vítimas que se sentiam mais a vontade conosco — e o lugar que funcionou como nossa primeira sede ajudava muito por ser discreto e acima de qualquer suspeita — o Secretariado Diocesano da Catedral São Francisco de Paula, no centro da cidade. Não é fácil receber as vítimas da violência de gênero. E além de termos a nossa própria vivência com isso, SEMPRE ouvi das delegadas, policiais, escrivãs, que a maior frustração no trabalho era a retirada da queixa pela vítima depois que o agressor pedia desculpas e jurava não bater mais. E não teve UM ÚNICO CASO desses em que a vítima não tenha voltado a apanhar. Muitas morreram. Sempre foi no sentido da proteção da vida e saúde das mulheres que atuamos, e não para impor o que achamos que é certo.

Adoraria que tivéssemos serviços de atendimento e apoio que dessem às mulheres agredidas condições dessa autonomia na decisão de manter ou retirar a queixa. É claro que a mulher deveria ter essa autonomia, mas tem ela discernimento suficiente estando psicológica e financeiramente dependente do agressor para decidir? Sendo essa decisão tomada no momento da vergonha da exposição pública de sua humilhação? Sim, porque há a culpabilização da vítima na situação toda, de cabo a rabo. Afinal, a sua humilhação só veio à público (como se os vizinhos, amigos e familiares não soubessem que ela apanhava antes da denúncia) porque ela tomou a atitude de denunciar o agressor. Some-se a isso a pressão da família que se sente exposta junto e muitas vezes fecha a porta da casa originária na sua cara e de seus filhos, os amigos que são amigos do casal e não querem se envolver, as amigas que também apanham e se sentem em risco em acolher ou até mesmo conversar na feira ou no Posto de Saúde com quem ousou denunciar o próprio marido e pai dos seus filhos… Enfim, conhecemos a situação em todos os seus detalhes sórdidos e não consigo, por mais que queira e deseje desesperadamente, enxergar nessas mulheres essa autonomia de decisão.

Gravura da artista plática Micaela Cyrino, que participou da exposição “16 Vezes Arte: Pelo Fim da Violência Contra a Mulher”.

Sempre considerei esse ponto um dos grandes empecilhos para a Lei Maria da Penha não funcionar como deveria até agora. Existem outros que devemos abordar, como a rede de atendimento à mulher que denuncia, o comportamento do Judiciário e o funcionamento das Defensorias Públicas, etc. É urgente vermos uma forma de vencer a burocracia e, independente da linha ideológico-partidária dos governos, termos atendimento adequado a essas mulheres. Não se quebra o ciclo da violência apenas com a denúncia ou a prisão em flagrante do agressor. A Renata aponta algumas coisas nesse sentido e como a decisão do STF está tomada, acho que devemos concentrar esforços nessas outras políticas de apoio à Lei Maria da Penha.

Nosso objetivo nunca foi simplesmente manter o agressor preso ou a garantia de sua punição. O objetivo maior sempre foi o apoio à mulher

agredida para que ela possa retomar sua vida sem violência e podermos, principalmente, tratar psicologicamente essas vítimas, mulheres e crianças, e conseguirmos, com sorte e muito esforço, amenizar as sequelas da violência. Uma sociedade que tem como “normal” e comum a violência doméstica está profundamente doente e precisa de tratamento. Incluo aí os homens, os agressores, que precisam também de acompanhamento. Eles não são monstros a serem apartados do convívio social. Eles são humanos (por mais contraditório que isso pareça) e a violência, de certa forma, está enraizada em todos nós e é enquanto sociedade que precisamos responder a ela.

Mas enquanto esse momento não chega, é a nós feministas que cabe o papel de enfrentar junto com as demais mulheres a face mais cruel da opressão que sofremos, e embora o debate teórico seja muito importante, é na prática, é na luta diária que podemos e faremos a diferença. Por fim, deixo um convite/apelo para quem não conhece de perto a rotina de uma Delegacia de Mulheres, da Defensoria Pública ou dos SIMs (onde houver): VÁ CONHECER?! A minha revolta com as mulheres que retiravam as queixas e não deixavam o inquérito seguir adiante (antes da Lei Maria da Penha), colocando em risco a sua vida e a de seus filhos, amenizou muito conforme fui conhecendo o estado de degradação dessas mulheres. Ver como a violência destrói uma mulher e retira sua autonomia, cidadania e auto estima é uma lição inesquecível. Não cabe a nós julgar essas mulheres, mas fazer o possível para protegê-las e ajudá-las a quebrar o maldito ciclo da violência, mesmo que, inicialmente, pareça que não estamos respeitando sua autonomia.

Lutamos muito para ter a Lei Maria da Penha. Façamos valer.

*Texto de Niara de Oliveira, jornalista e blogueira do Pimenta com limão.